Como fizemos a revolução
Quando ligamos o computador ou o iPad e assistimos a um clipe no YouTube nem nos passa pela cabeça a verdadeira guerra de guerrilhas que vêm sendo as relações entre a produção e o consumo de música e a sonorização da internet.
É sensacional podermos criar uma música e, em minutos, podermos gravá-la em múltiplos detalhes, com inúmeros recursos equivalentes aos dos maiores estúdios. Em seguida, pegamos uma câmera, gravamos algumas cenas e as editamos com outros tantos recursos. Mais alguns minutos e nossa obra prima está sendo vista por milhares de pessoas no YouTube.
Hoje, temos todas as ferramentas para produzir nossos sons e imagens com a mesma qualidade das grandes produtoras de áudio e vídeo. Só não usa esses recursos quem não quer ou quem ainda não teve como obter conhecimentos suficientes para isso.
Esta é uma situação recente, ainda vivenciando profundas transformações. Há alguns anos, a produção de gravações era toda realizada em estúdios comerciais. Os equipamentos analógicos eram muito caros, e ainda são. Até os cabos para conectá-los tinham preço proibitivo para a maioria.
Todo estúdio tinha um gravador multipista. Os estúdios comerciais usavam gravadores de fita de rolo com 24 pistas de áudio. As pequenas produtoras usavam gravadores de rolo com oito ou 16 pistas e os home studios, na maioria, “porta-estúdios” com quatro pistas em fita cassete. Quanto mais barato, mais o gravador gerava ruídos.
Além desse gravador multipista, os estúdios tinham um gravador estéreo (rolo, cassete deck ou DAT), uma mesa com o dobro de canais, mais quantos processadores de efeitos pudessem comprar.
Há alguns anos, a produção de gravações era toda realizada em estúdios comerciais.
As produtoras e os músicos usavam incontáveis teclados sintetizadores e samplers. Os estúdios tinham muitos racks de efeitos e de instrumentos. E cabos. Muitos cabos. Sem a opção das bibliotecas dos instrumentos virtuais, a sonoridade era obtida com a acústica tratada de grandes salas de gravação e ótimos microfones.
É fácil imaginar que esses recursos ficavam nas mãos de uma ínfima minoria que tinha poder aquisitivo suficiente para investir na sua montagem e manutenção. Os músicos criavam suas obras e alugavam os estúdios para registrar o som em fitas de demonstração e partir em busca de um contrato.
Nesse período, toda a divulgação musical e todo o comércio de gravações estavam a cargo das gravadoras. Essas empresas mantinham grandes estúdios e se encarregavam de definir todos os aspectos da carreira musical de seus contratados, também chamados de “artistas”.
Assim, o artista podia gravar com arranjador, banda, orquestra, produtor musical e todo o conforto, desde que fosse lucrativo para a gravadora. Sem nenhuma despesa. Em troca, deixava por lá bem mais de 90% do que era arrecadado com as vendas de cópias da sua criação.
Com o tempo, a estratégia de marketing dessa indústria passou a ser o pagamento regular em dinheiro a programadores de rádio e TV, prática conhecida como “jabá”. A partir daí, só as produções musicais que pagassem jabá seriam tocadas pelas emissoras, criando-se um verdadeiro latifúndio ou monopólio musical.
Sem ganhar tanto, mas com toda essa divulgação, sobrava para artistas e bandas o sustento através de apresentações em público. A mentalidade que justificava toda essa relação entre artistas, gravadoras e a mídia era a de que “o artista vive de shows”.
E não era pouco sustento. Quando a gravadora trabalhava um artista razoável, ele ganhava bem. Mas os artistas lançados por gravadoras sempre foram uma ínfima minoria no meio musical. Os raríssimos privilegiados que conseguiam um contrato que fosse posto em prática pela gravadora realmente ganhavam bem. Alguns estão riquíssimos.
Estrategicamente, as grandes gravadoras tinham o controle do processo porque tinham o monopólio da qualidade da gravação e da capacidade de comercialização dos CDs.
As gravadoras tinham total poder sobre os seus contratados, como a escolha de músicas, de músicos, de arranjos, da sonoridade, das estratégias publicitárias e até da aparência do 'artista'.
Muitas vezes, essa indústria recorria a práticas comerciais e trabalhistas abomináveis, como os “contratos de geladeira”, em que o disco não era lançado, mas o incauto ficava preso a cláusulas contratuais que praticamente encerravam a sua carreira, sem poder assinar com outra gravadora por anos, nem lançar o disco de forma independente.
Isto ocorria com frequência, sempre que uma gravadora temia que um artista novo, concorrente de um contratado seu, fosse lançado por outra “coirmã”. O contrato não previa lançamento de disco (!), só as obrigações do artista, como a exclusividade por alguns anos. A geladeira. Muitos músicos assinaram sorrindo.
Ninguém chamou a polícia. Aliás, só o Tim Maia. Depois, Lobão botou a boca no mundo e denunciou o jabá, mas ficou por isso mesmo e ele vendeu cem mil cópias do CD no jornaleiro.
Mas isso, quando a maioria das pessoas compravam CDs.
As coisas começaram a mudar pra valer quando apareceram os arquivos MP3, os gravadores de CD-R e as novas interfaces de áudio ou placas de som, no final dos anos 1990.
Estrategicamente, as grandes gravadoras tinham o controle do processo porque seguravam as duas pontas: a qualidade da gravação e a capacidade de comercialização dos CDs.
As placas de som eram caras como os gravadores de rolo, chegando a custar dezenas de milhares de dólares. São elas que garantem a qualidade do material gravado, pois contêm os conversores de áudio analógico-digital (AD) e digital-analógico (DA), os principais responsáveis pela fidelidade do som no computador.
As interfaces mais baratas adicionavam ruídos e distorções consideráveis, inviabilizando o seu uso para fins comerciais ou profissionais. E levar os CDs aos quatro cantos do país ou do mundo era prática impensável fora da indústria.
E a internet? Naquele tempo, com os modems telefônicos de 14,4 ou 28,8 kbps, arquivos WAV com qualidade de CD consumiam horas de conexão para serem enviados.
O surgimento do MP3 levou a um fenômeno que foi chamado de “áudio líquido”, ou sem suporte físico. Como as gravadoras estavam acostumadas ao monopólio da venda de músicas baseadas em suporte (vinil, CD), elas tiveram a pior reação possível, buscando censurar a novidade. Criaram a campanha de marketing antipirataria e deram outros tiros no pé, como a destruição do Napster e as tentativas de proibir o MP3.
O objetivo não era só afugentar o ouvinte de música da prática incipiente dos downloads. O temor das majors, como essas empresas gostavam de ser chamadas, era que a classe musical percebesse que não precisaria mais delas.
Para um músico, a distância entre ele e as gravações de alta qualidade passou a ser o preço de uma boa placa de som.
Foi aí que apareceu a Layla.
No final de 1997, a Revista Backstage publicou uma matéria minha em que apresentávamos aos leitores uma novidade: uma placa de som com interface separada que custava 999 dólares. Leia aqui.
Layla, Gina e Darla, as irmãs Echo em 1997
Ela tinha oito canais de entrada e saída de áudio em conectores balanceados, conversores AD/DA de alta qualidade e um processador DSP igualzinho ao Mac da época. Essa joia era compatível com quase todos os programas, ao contrário das concorrentes, muito mais caras e cada qual compatível somente com seu software proprietário.
Anunciadas antes de ficarem prontas, Layla e suas acessíveis irmãs Gina e Darla, também de alta qualidade, só com menos canais, foram tão assediadas pelo público consumidor que quase a fábrica quebrou devido ao inchaço. Empresas melhor estruturadas como a M-Audio (antiga MIDIMan), a MOTU, a Edirol (Roland) e a RME souberam rapidamente ocupar este mercado, com larga vantagem para a primeira.
A partir daí, para um músico, a distância entre ele e as gravações de alta qualidade passou a ser de poucas centenas de dólares, o equivalente a um dia de aluguel de um bom estúdio. O preço de uma placa de som.
Os programas e os computadores continuaram evoluindo, permitindo aos poucos usarmos uma quantidade crescente de efeitos em tempo real, viabilizando a mixagem no computador, até, finalmente, substituirmos os instrumentos por outros programas, os instrumentos virtuais.
O gravador de CD já era uma realidade, porém logo ofuscada pelo MP3 e o frenético compartilhamento de arquivos que os sucedeu. Com produções bem trabalhadas, milhões de músicos independentes passaram a divulgar seu material na internet e a vender seus próprios CDs.
Em outras palavras, cada músico passou a ser a sua gravadora. Exatamente o que as gravadoras mais temiam quando partiram para a luta armada mandando prender internautas e camelôs.
E sem esquecer que o artista vive é de shows. Ou do trabalho de sua produtora.
Hoje, as placas ou interfaces de som usam, na maioria, conexões USB e ficam fora do computador. Têm conversores de 24 bits e de 96 kHz ou conexões digitais. Elas têm ficado mais bonitas e vistosas, mas não são tão diferentes assim das velhas Layla ou Delta 1010. Placas e programas com problemas de compatibilidade foram dando lugar a modelos que facilitam a nossa vida.
Principal fábrica de placas de som para home studios, a M-Audio acabou sendo comprada pela principal fábrica de produtos para grandes estúdios, a Avid. Em vez de eliminar a compatibilidade das M-Audio, a necessidade fez prevalecer o bom senso: hoje é o Pro Tools, carro-chefe da Avid, que se abre à compatibilidade com quase todas as placas do mercado.
Com produções bem trabalhadas, milhões de músicos independentes passaram a divulgar seu material na internet e a vender seus próprios CDs.
A internet vive uma explosão de compartilhamento de músicas e clipes. Especialmente os vídeos produzidos e colocados pelo próprio público no YouTube e divulgados pelo Facebook, o Twitter e outras redes sociais têm alcançado um grau antes impensável de democratização do acesso às obras artísticas e de proliferação de gostos e tendências.
Essa foi uma revolução em que os vencedores não chegaram a se articular. Não houve reuniões, conspirações ou atos públicos. Ao contrário. Cada produtor musical e cada ouvinte de música, no aconchego de seu computador, mudou para sempre o som do mundo da maneira mais individual possível. E o mundo ficou mais musical.
Falta ainda a etapa superior desta revolução, que é a superação artística. Quando os criadores de obras musicais superarem a influência do que foi a indústria fonográfica e aproveitarem toda a multiplicidade de tendências que soam na internet para se inspirar, então teremos colhido os frutos de toda esta luta pela liberdade musical.
A liberdade de expressão na internet deve ser sempre defendida pelos produtores musicais, já que ela é que garante o livre tráfego do áudio na rede.
Com uma boa conexão, uma placa de som muito bem escolhida, conhecimento técnico e musical e um bocado de inspiração, o mundo dos sons agora é nosso. Cada um de nós é a sua gravadora e a sua emissora de rádio e TV. É só querer e estudar.